A Primeira Ordem do Amor: O Direito ao Pertencimento
- Neiva Klug
- 19 de ago.
- 9 min de leitura
Atualizado: 13 de set.
A compreensão das ordens do amor (hoje chamadas de forças do amor) por Bert Hellinger foi precedida por outro conhecimento revolucionário empreendido por ele: os diferentes tipos de consciência.
Através da constelação familiar pode identificar a consciência pessoal e a coletiva, também chamada de clã.
E o critério para a consciência é o que vale no grupo ao qual pertencemos. Por isso, grupos diferentes tem consciências diferentes.
Vamos desenvolver uma série de reflexões trazidas por Bert a partir de suas constatações através da constelação familiar, e que trarão clareza a respeito de:
1- Necessidade de pertencer.
2- Necessidade de equilíbrio entre o dar e o receber.
3- Necessidade de ordem.
Ao longo desses três temas muita compreensão chegará com relação aos conflitos, emaranhados e lealdades sistêmicas que muitas vezes bloqueiam nosso fluir leve em direção ao próprio destino.
A PRIMEIRA ORDEM DO AMOR:
O DIREITO AO PERTENCIMENTO
A consciência coletiva ou de clã é uma consciência de grupo, pois todo ser humano está ligado aos seus pais e ao seu clã em uma comunidade de destino. Com nossos pais também partilhamos seus clãs e passamos a pertencer a um clã, no qual os do pai e da mãe se uniram.

Um clã se comporta como se fosse mantido coeso por uma força que une todos os membros e por um senso de ordem e equilíbrio que, de certo modo, influi em todos os membros. Quem é unido e guiado por essa força e quem é contemplado por esse senso pertence ao clã. De modo geral, trata-se das seguintes pessoas:
1. Todas as crianças, incluindo as abortadas, as que partiram, as natimortas, as entregues para adoção e as esquecidas. Meios-irmãos também contam como membros integrais da família.
2. Os pais e seus irmãos de sangue, incluindo os abortados, os que partiram, os natimortos, os entregues para a adoção e os esquecidos.
3. Ex-companheiros dos pais.
4. Os avós, mas sem seus irmãos, embora haja exceções nesse sentido.
5. Em casos excepcionais, também os ex-companheiros dos avós.
6. Todos cuja morte ou perda precoce proporcionou algum benefício aos membros da família e se desse modo contribuíram para a sobrevivência da família atual e de seus descendentes.
7. Se membros da família foram culpados pela morte de outras pessoas, suas vítimas também pertencem à família.
8. O contrário também é verdadeiro: se na família houve vítimas de assassinos externos, estes também pertencem à família.
9. Se a família obteve alguma vantagem em detrimento de outrem, o prejudicado também pertence à família.
Enquanto a consciência pessoal é sentida pelo indivíduo e serve ao seu pertencimento e à sua sobrevivência pessoais, a consciência coletiva ou de clã considera a família como um todo, pois a preservação da integridade no clã, ou seja, sua plenitude, depende estreitamente do vínculo do destino.
Por isso, de acordo com a primeira ordem servida por essa consciência, todo membro da família tem igual direito de pertencimento. No entanto, em muitas famílias e em muitos clãs esse direito é recusado aos membros. Por exemplo, se um homem casado tem um filho ilegítimo, às vezes sua mulher diz: “Não quero saber dessa criança nem da mãe dela; elas não pertencem a nós”. Ou quando um membro da família teve um destino difícil, por exemplo quando a primeira esposa do avô morreu após o parto, seu destino amedronta os outros, que não mencionam o fato, como se a mulher não tivesse existido.
Crianças mortas precocemente ou natimortas também costumam ter esse direito negado, por exemplo ao serem esquecidas. Às vezes também acontece de os pais darem ao filho seguinte o nome do filho morto. Desse modo, é como se dissessem ao primeiro: “Você já não está entre nós, encontramos um substituto”. A criança morta nem sequer pode manter seu nome. Com frequência, diz-se a um membro da família que demonstra um comportamento desviante: “Você nos envergonha, por isso o estamos excluindo”.

Na prática, a moral muito arrogante nada mais significa do que uns dizerem aos outros: “Temos mais direito de pertencer a esse grupo do que vocês”. E: “Vocês têm menos direito de pertencer a esse grupo do que nós”. Ou ainda: “Vocês perderam seu direito de pertencimento”. Nesse sentido, o bem nada mais significa além de: “Tenho mais direitos”. E o mal: “Você tem menos direitos”.
Quando os membros de um clã recusam a um membro anterior seu direito ao pertencimento – seja porque o desprezam, porque temem seu destino, seja porque não querem reconhecer que ele abriu espaço para os descendentes – ou quando não reconhecem algo pelo qual, ao contrário, deveriam ser-lhe gratos, um descendente se identifica com ele e o imita sem perceber nem conseguir evitá-lo, pressionado que é pelo senso de compensação da consciência de clã. Muitas vezes, ele nem sequer conhece o excluído e nada sabe de sua existência.

Esse membro assume, então, como representante, o destino do excluído. Pensa como ele, tem sentimentos semelhantes, vive de maneira análoga e chega a ter uma morte parecida. Portanto, esse membro da família encontra-se a serviço da pessoa excluída e defende seus direitos. É como se fosse possuído pela pessoa excluída sem perder seu próprio self. Pois sempre que a um membro for negado o pertencimento, haverá no clã um ímpeto irresistível para restabelecer a integralidade perdida e compensar a injustiça ocorrida.
A esse respeito, dou um exemplo: um homem casado conhece outra mulher e diz à primeira: “Não quero mais saber de você”. Se tiver filhos com sua nova esposa, um deles representará a primeira mulher abandonada e combaterá o pai talvez com o mesmo ódio que ela. Ou, então, se afastará dele com a mesma tristeza que ela. Mas esse filho não sabe que está rememorando e legitimando a excluída.
Isso significa que um poderoso senso de ordem, que de certo modo age em todos os membros, zela para que todos os pertencentes ao clã perdurem além da morte. Pois o clã abrange tanto os vivos quanto os mortos, em geral até a terceira e às vezes até a quarta e quinta geração anterior. Ninguém quer ser separado de sua família pela morte. Sobretudo, a consciência coletiva quer até mesmo trazer os membros de volta para a família. Em outros termos, embora com a morte percamos a vida atual, nunca perdemos nosso pertencimento à família.
Não é que a pessoa excluída queira espontaneamente ser representada desse modo. Em primeiro lugar, é a consciência coletiva a provocar essa representação. Chamo isso de envolvimento. Com frequência, ele explica o comportamento estranho de um membro da família.
Comparada com a consciência pessoal, a coletiva se mostra como totalmente imoral ou amoral. Não faz distinção entre o bem e o mal nem entre a culpa e a inocência. Por isso, não se pode imaginar essa consciência como uma pessoa que persegue objetivos pessoais após uma reflexão amadurecida. Ela age, antes, como uma pulsão, uma pulsão de grupo, que só quer uma coisa: salvar e restaurar a integralidade. Desse modo, é cega na escolha de seus meios. Praticamente se apropria de um membro inocente da família e o vincula ao destino do excluído.

Por outro lado, a consciência de clã protege todos do mesmo modo, uma vez que pretende restaurar seu pertencimento quando este é negado.
É extremada e trágica a maneira como a consciência de clã relembra, ao longo de várias gerações, um membro esquecido da família por meio de outro, que atua como seu representante. É o que veremos no exemplo a seguir, que um cliente me relatou por carta e que reescrevo atendo-me fielmente às suas informações:
A bisavó do cliente casou-se com um jovem agricultor, de quem engravidou. Ainda durante a gestação, seu marido morreu aos 27 anos, no dia 31 de dezembro, de febre tifoide. A partir dessa época, acontecimentos consistentes indicavam que, já durante o casamento, a bisavó teria tido um relacionamento com aquele que viria a ser seu segundo marido e que a morte do primeiro estaria relacionada a esse fato. Chegou-se a suspeitar de que ele teria sido assassinado.
A bisavó se casou com o segundo marido (o bisavô do cliente) em 27 de janeiro. Esse bisavô sofreu um acidente fatal quando seu filho tinha 27 anos. Nesse mesmo dia, 27 anos depois, um neto do bisavô morreu do mesmo modo. Outro neto desapareceu aos 27 anos.
Exatamente cem anos após a morte do primeiro marido da bisavó, um bisneto morreu aos 27 anos no dia 31 de dezembro; portanto, com a mesma idade e na mesma data em que morrera o primeiro marido da bisavó. Esse bisneto havia enlouquecido e se enforcou no dia 27 de janeiro, dia do casamento da bisavó com o segundo marido
Nessa época, sua esposa estava grávida, tal como a bisavó, quando seu primeiro marido morrera.
Um mês antes de entrar em contato comigo, o filho do homem que se enforcara, portanto o tataraneto da bisavó do cliente, completara 27 anos. Meu cliente estava com o mau pressentimento de que poderia acontecer algo com esse filho, mas achava que o perigo recairia no mesmo dia da morte do pai dele, ou seja, 27 de janeiro. Procurou o rapaz para protegê-lo e com ele visitou o túmulo de seu pai. Em seguida, a mãe do rapaz contou que no dia 31 de dezembro ele havia perdido a cabeça, manuseado um revólver e tomado todas as providências para se matar. Todavia, ela e seu segundo marido conseguiram dissuadi-lo. Esse fato ocorreu exatamente 127 anos depois que o primeiro marido da bisavó morrera aos 27 anos no dia 31 de dezembro. Vale notar aqui que esses familiares nada sabiam do primeiro marido da bisavó. Portanto, nesse caso, um acontecimento ruim repercutiu de modo trágico até a quarta e a quinta gerações. Contudo, a história ainda não terminou. Alguns meses após me escrever, o cliente me procurou em pânico, pois tinha pensamentos suicidas, que já não conseguia evitar. Disse lhe para imaginar-se diante do primeiro marido da bisavó. Deveria olhar para ele, curvar-se diante dele, até o chão, e dizer-lhe: “Concedo-lhe a honra. Você tem um lugar em meu coração. Por favor, abençoe-me se eu ficar”.
Em seguida, pedi-lhe que dissesse o seguinte à bisavó e ao bisavô: “Não importa qual foi sua culpa, deixo-a com vocês. Sou apenas um filho”. Pedi também para que ele se imaginasse tirando sua cabeça de uma corda com cuidado, andando devagar para trás e deixando a corda pendurada. Foi o que ele fez. Em seguida, sentiu-se aliviado e liberto de seus pensamentos suicidas. Desde essa data, o primeiro marido da bisavó é um amigo que o protege.
Com esse exemplo, também mostrei uma solução que, por meio da cura, cumpre o que é exigido pela consciência de clã. Os excluídos são reconhecidos e recebem o lugar e o estatuto que lhes cabem. Assim, ninguém mais precisa imitá-los. E os pósteros deixam a culpa e suas consequências no local a que pertencem, retirando-se delas com humildade. Em linha de princípio, esse é um processo interior. Desse modo, chega-se a um equilíbrio que traz reconhecimento e paz para todos.

Como esse processo é produzido na constelação familiar? Como um membro da família que imita um excluído pode ser libertado do envolvimento? Tomemos novamente o caso da mulher abandonada. Na constelação, a segunda mulher diria, por exemplo, à primeira: “Você é a primeira, sou a segunda. Reconheço que cedeu espaço para mim”. Se a primeira mulher sofreu uma injustiça, a segunda pode acrescentar: “Reconheço que você foi injustiçada e que consegui meu marido à sua custa”. E ainda pode dizer: “Por favor, seja amigável comigo se aceito e mantenho meu marido como meu, e seja amigável com meus filhos”. Nas constelações familiares é possível ver que o rosto da primeira mulher se descontrai e concorda, pois recebeu atenção. A ordem é restabelecida, e nenhum filho terá mais de representá-la.
Dou outro exemplo extraído de meu trabalho: um jovem empresário e representante exclusivo de um produto na Alemanha chega com seu Porsche e narra seus sucessos. Não há dúvida de que é capaz e de que possui um charme irresistível. No entanto, gosta de beber, e seu contador o adverte de que gasta muito dinheiro da empresa com assuntos particulares, pondo os negócios em risco. Apesar de seu sucesso até o momento, intimamente buscou perder tudo.
Descobriu que sua mãe havia deixado o primeiro marido porque, como ela mesma disse, ele não era de nada. Casou-se, então, com o pai desse rapaz, levando consigo o filho do primeiro casamento, que não pôde mais ver o pai biológico e até esse dia não tinha retomado nenhum contato com ele. Tampouco sabia se ainda estava vivo.
O jovem empresário notou que não tinha coragem de ser bem-sucedido por muito tempo. Na constelação familiar, ficou claro que representava o primeiro marido excluído da mãe e assumia inconscientemente sua falta de êxito. Ao mesmo tempo, reconheceu que devia sua vida à infelicidade de seu irmão. Na constelação familiar, também se reconheceu ao primeiro marido o lugar que lhe cabia. Além disso, o jovem empresário encontrou a seguinte solução para sua ação:
Em primeiro lugar, conseguiu reconhecer que o destino relacionava o casamento de seus pais e sua própria vida à perda que seu irmão e o pai dele tiveram de enfrentar.
Em segundo lugar, apesar disso, pôde afirmar sua felicidade e dizer aos outros que passaria a considerá-los iguais e com os mesmos direitos.
Em terceiro, estava disposto a ajudar seu irmão como prova de sua disposição para compensar os atos de dar e receber. Por isso, decidiu descobrir o paradeiro do pai desaparecido do irmão e intermediar um reencontro entre os dois.
Onde as ordens do amor prevalecem, cessa a corresponsabilização familiar por uma injustiça ocorrida, pois a culpa e suas consequências permanecem em seu devido lugar, e em vez da vaga necessidade de compensação no mal, que gera continuamente o mal a partir do mal, ocorre o equilíbrio no bem. Esse equilíbrio dá certo quando os pósteros recebem os antepassados, independentemente do preço pago, e quando os honram, independentemente do que tenham feito. O equilíbrio também se dá quando os fatos já ocorridos, tenham sido bons ou ruins, podem ficar no passado. Os excluídos recebem, então, o direito à hospitalidade e, em vez de nos aterrorizarem, trazem a bênção. E quando também lhes concedemos em nossa alma o lugar que lhes cabe, ficamos em paz com eles e nos sentimos plenos e completos, pois temos conosco todos que nos pertencem.
BERT HELLINGER - MEU TRABALHO. MINHA VIDA. Ed. Cultrix
Hellinger, Bert, 1925-2019 Bert Hellinger : Meu trabalho. Minha vida. A autobiografia do criador da Constelação Familiar / com Hanne-Lore Heilmann ; tradução Karina Jannini. -- São Paulo : Cultrix, 2020




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